quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Danou-se

Era a última folha do último galho da última árvore da última cidade do último país do último continente do último planeta da última galáxia do último grãozinho de arroz.
Ela balançava harmoniosamente, poeticamente, quase lentamente performática aos tranqüilos estímulos da brisa cuidadosa e carinhosa com a última folha do último grãozinho de arroz.
Um dia veio um vento brutal, desajeitado, lindo e sensual, feroz, quase carnal, enorme, se transformou em furacão e derrubou a folhinha no chão.
Acabou-se o Baião de dois.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Meus olhos adolescentes

Que sono. Que sono... Que sono....
Que sono que me vem...
Eu te olhando em um momento e, no outro, os olhos se rebelam e vão se trancar atrás das pálpebras, batendo-as malcriadamente ao passarem!
Meus olhos adolescentes...
Arrombo as duas portas violentamente assim que me percebo adormecendo, meus olhos te olhando ainda, disfarçando.
Bate de novo o sono. Bate um sono... Bate um sono...
Um sono que me bate...
Vai de novo tudo rodando, tua imagem se dissolvendo, se misturando com meu piscar. Teu som também vai se diluindo, se transformando em meus pensamentos. Eu lutando para voltar a(o) te(u) olhar...
Meus pensamentos, mais concretos que nunca!
Meus pensamentos, mais claros que nunca!
Eu ainda sem saber que adormeci, de repente me sinto feliz e confortável, mergulho em um rio de pensamento e deixo a correnteza me carregar.
Olho os galhos das árvores passando acima... o barulho da água nos ouvidos... alguns peixes esbarrando nas costas abaixo... a brisa na ponta do nariz molhado...
Uma velha sentada vai tricotando com os fios de água do rio... Uma luva vai voando pelo céu até cair nas mãos de um namorado, nu, brilhando sob o sol... uma pedra vermelha passa rolando pela cachoeira... ele grita e dá um pulo, mata um albatroz para comer e beija a velha com sua língua roxa e comprida...
A correnteza vai me levando enquanto eu aprecio a paisagem.
Como é esquisito que um namorado tenha vestido apenas uma luva...! Muito estranho! Mas olha aquela árvore feita de agulhas!
...bonita...
Um jovem moreno e um velho sem olhos lambem meus dedos enquanto eu tento subir uma colina verdemente gramada. Eu enfio a mão em suas bocas e carrego-os como malas pesadas, o cheiro doce dos dois... que cansaço!
Aquele pier feito de madeira avança não sobre o lago Paranoá, sobre um abismo. Parece perfeito sentar lá e descansar...
Balanço as pernas no vazio, sentado sobre as tábuas do pier, olhando para baixo, escuro, acima, claro.
Vão as tábuas se desmanchando, o pier desabando, eu caindo... tentando alcançar os pedaços para fazer uma escada enquanto caio no escuro. Não dá! Não dá!!! Estão todas podres! Uma única martelada desfaz a madeira em pó! Não dá!
Eu caio com a cabeça sobre as coxas quentinhas, dentro de uma bermuda jeans esfiapada... Enquanto brinca com meus cabelos, choro e conto como não conseguia fazer uma escada - uma simples escada! - durante a queda... Minhas lágrimas molham tuas coxas e eu escorrego por elas.
Fico sufocado! Socorro! Eu, preso entre as pernas molhadas! Socorro! Abre as pernas! Socorro!
Tento sair e escorrego nas paredes feitas de pele molhada. Tento escalar, rasgando as carnes com as unhas, mas é tudo escorregadio de lágrima, suor e sangue! Faço um desenho para você e colo na parede, para quando você chegar!
Mergulho na água fria e penso se é um rio que vira uma vez...
Meus olhos adolescentes...
Lembro do teu rosto, teu sorriso incandescente falando... O que...? O teu sorriso falando o quê? De onde vem teu riso? Cadê você?
Você está rindo de mim. Mas por que será?
Que engraçado...
iuhaiuahaiuahaiuahiauhaiuahaiu
Sinto minha boca se alargando e devo estar sorrindo, mas eu estou sorrindo. Devo estar sorrindo. Eu estou sorrindo! Devo estar...
Arrombo as portas novamente, como que recuperando o fôlego depois de quase afogado!
Meus olhos perdidos como adultos, assistindo você rir de mim enquanto assiste eu despertar.
Devo estar dormindo.

Funcionou. O sono passou!