segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Diário de Lisboa . Drão


Dois dias encasulado na masmorra. Enclausurado no casulo.
Gastar o dinheiro de dois meses em duas semanas dá nisso! Muito bem gastos... com o que gosto, com quem gosto, com quando gosto.
Tendo como janela só a minha pequena, que dá para o número 26 lá na rua, número que ainda se justificará neste caminho à frente. Tendo como janela apenas a minha pequena, luminosa, que dá para o Brasil, para Brasília, para casa, às vezes para o mundo.

Pensando muito sobre o amor, sobre se é necessário pensar sobre o amor tão longe de casa, pensando se saudade é amor, se a saudade é caleidoscópica, ouvindo "Drão", impressionado com o último verso, reverberando para além do vídeo no Youtube, pensando se o meu amor tem lar em qualquer parte do mundo, se eu tenho coração em toda a parte do mundo.

É o que eu acho que acontece. Sem olhar as paisagens lá fora, olho pra paisagem aqui dentro. E está tudo turvo, sob neblina densa num dia de sol intenso... e o que se vê são praticamente apenas os raios do sol, com seu percurso encantador, mágico, etéreo desmascarado pela névoa. Algumas silhuetas que facilmente me distraem, divertem ou amedrontam ao redor... suas origens reais misteriosas, nada é claro.

Nessa paisagem, escuto umas vozes vindo não sei de onde, vozes do passado, de momentos do passado, de sentidos do passado, atravessando a bruma... Dizem coisas boas de ouvir no ouvido desse mesmo passado, estranhas ao ouvido que anda comigo agora, distraindo-o dos raios de sol. Tão longe de tudo que construí e mesmo assim algo que já quis muito construir me persegue agora com tijolos, cimento e pedreiro na mão. Mas não há mais lugar pro tamanho dos planos de ontem. Há lugar pra outros... Há apenas o lugar cigano e nômade da falta de planos.. drão... acho que também percebi que o verdadeiro amor é vão.

Faz menos sentido pensar no amor aqui, faz todo o sentido sentir amor aqui. É tudo lindo através do litros de água que me distanciam, é tudo lindo através da distorção, e talvez seja tudo mais verdadeiro através da distorção.

Antes mesmo de decolar, já embarcava na viagem de vinda pra descobrir que eu amo. E nunca me esqueço do "infinito mar", o infinito amar, nem do rio que corria para lá, do medo que eu tinha e dos pés que nunca haviam se molhado. Hoje ensopados, enlameados, atolados, machucados, afogados, mas no turbilhão da correnteza! E como é inacreditável o turbilhão da correnteza! E parece não fazer sentido se locomover se não for à nado, abandonando o barco e mergulhando na beira da praia, se afogando na areia.

"Morrer e nascer trigo. Viver e morrer pão"

A Lisboa de hoje acontece aqui dentro. As paisagens não são muito diferentes do que se via no Brasil, mas parecem abrigar uma foto panorâmica agora.

Hoje fiz uma caldo de marisco.
De saquinho, mas acrescentei tomate, alface, cenoura, repolho; temperei com orégano, alecrim, vinho branco, azeite... não obedeci o modo de preparo das instruções. Ficou maravilhoso.

Acho que a minha Lisboa, eu, estamos meio como esse caldo de marisco...
Tem algo na garganta que não quer sair.

Acho que é Caetano Veloso.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Diário de Lisboa . Apenas o fim do mundo

Foi apenas um copo de cerveja, uma Super Bock de 400 ml por 3,80 euros.
Foi apenas a dançarina de Cabo Verde chamada Camila dançando e vendendo os cd's da banda por 10 euros.
Foi apenas a música em frente à estátua de Fernando Pessoa.
Foi apenas o anoitecer. Foi apenas um ponto muito turístico demais.
Foi apenas The XX tocando dentro de mim ao ritmo de "chega de saudade, a realidade é que sem el...".
Foi apenas um encantamento com a menininha de casaco vermelho dançando antes de saber andar, lá, entre as pessoas indo e vindo na calçada.
Foi apenas saber que via a Camila dançando em pontos diferentes da cidade desde minha chegada.
Foi apenas o céu do tamanho da vida do universo lá em cima, suspenso, como um grão invisível. As Três Marias acompanhando minha viagem quando o que eu achava é que só voltaria a vê-las em seis meses. Vim acompanhado de amigos afinal.
Foi apenas a brasileira de sobrenome "Alegria" sentada no desnível da calçada vendendo desenhos antes de ser brasileira.
Foi apenas um par de olhos azuis que prometem e escondem muito.
Foi apenas o calor que fez hoje...
Foi apenas as pessoas. As pessoas. As pessoas.
Foi apenas... e foi pouco mesmo. Foi tudo pequeno como aquela partícula de poeira que a gente surpreende na luz do sol, ou como aquele pontinho semi-transparente que foge da pupila quando a gente tenta olhar diretamente pra ele.
Foi pequeno como os dias que achei natimortos, como os amores dolorosos e os inesperados - que são os mesmos -, como os dias ensolarados em que chove, como duas pessoas que duram pra sempre numa noite, pequeno como o encontro e o reencontro, foi pequeno como a perda...
Foi apenas isso e pequeno como a minha simples vontade de falar que o vulcão está em erupção. Que está a explodir num espetáculo lindo e terrível, que está a queimar tudo aqui dentro, destruir todos os calendários internos... Aqui dentro eu já enfrento o fim do mundo, e que todos podem se acalmar porque os maias fizeram aquele calendário pensando somente em mim, eu sou 2012 aqui dentro.
E é apenas o fim do mundo.

Hoje, eu espero que todos que eu amo queimem, tenham uma auto-estrada de altíssima velocidade cá dentro, tenham os olhos ardendo da mistura do riso com a lágrima, que sejam donos do mundo e deuses de outros só seus, que tenham o futuro do tamanho de dois segundos a cada dois segundos, que tenham o grave de suas músicas vibrando o peito.
Hoje, eu só desejo que todos que amo sejam muito felizes.
Eu desejo tão pouco neste momento.
É tanto desejar que querer pouco assim seja sempre?

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Diário de Lisboa . Casa-quarto

Dia de faxina e arrumação.
Fiz uma limpeza naquilo que estava inaceitavelmente sujo, dobrei algumas roupas que estavam largadas no chão, organizei e classifiquei papéis em gavetas, armários e pastas, desempacotei pincéis, pastéis, lápis de cor, canetas e outros lápis, papéis em branco, separei as fotos que ornamentarão as paredes, aquele desenho na escada, coloquei o reloginho verde sobre a mesinha.

Agora o peito parece finalmente habitável, está mais confortável para o coração, mais acolhedor para o pulmão, mais espaçoso para as costelas. Estou a encher o peito de respiração neste momento, o ar estranhando a ausência - momentânea, eu sei - de bagunça e desorganização, deitado no chão do peito, olhando pela pequena janela da masmorrinha da garganta.

Aqui fora também aconteceu de forma parecida, na verdade, de forma exatamente igual: fiz uma limpeza naquilo que estava inaceitavelmente sujo, acalmei as saudades que estavam largadas pelo chão, organizei e classifiquei os planos e expectativas em gavetas, armários e pastas, desempacotei os desejos, as vontades, o vigor, as esperanças dos papéis em branco, separei os momentos e pessoas que ornamentarão as paredes, aquele sentimento, coloquei o reloginho verde sobre a mesinha.

E agora está tudo branco nas paredes brancas. Um quarto quase livre dos resquícios da viagem senão pelas malas atrás da porta, esperando por nova bagunça. Uma de resquícios da permanência, do lixo que surgir daqui, do que morrer da vida aqui, do que simplesmente nascer.

Ao chegar da rua, chegar em casa. Um martini à espera, uma portuguesa chamada Ana,um convite, um pouco de inglês com o alemão, tabaco na mortalha, música e Amanda.
Chegar em casa...

Chegar em casa até que se esteja em casa.

Ps.: e as horas da madrugada ainda me surpreendem.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Diário de Lisboa . Corpo lisboeta

Começo a constituir corpo lisboeta.
Hoje ganhei boca e pernas.

Boca a abrigar a cidade, a língua revolvendo a cidade dentro da boca, o estrogonofe na boca, a boca a comunicar outras bocas, bocalcântara no comboio, a boca a brincar com a língua, a língua na língua, o português... o português e o português. Boquiaberto, boquiabrindo-nos, desatando-nos.
Um trem na bocascais, o cais na bocascais, uma praia na bocascais, albatrozes e gaivotas na bocascais, um velho barco na bocascais, duas cervejas na bocascais. Cascais do sol tão longe da vista, caindo invisível e uma fome de por-do-sol na bocascais. Boca engolindo toda Cascais de uma vez.

Um barco desatracado na língua...
Irish Pub fixe. Hard Rock Cafe. Ouço malta de xungas e mitras. O fado na Rua da Saudade. Os azulejos na esquina deste momento.

Pernas por 26,90 euros, a andar por trilhos, rodas, estradas, cobrir toda Lisboa e só ela. Via Carris, por autocarros, comboios e elétricos. Dando passos maiores que as pernas por 4,10 euros, o preço do tropeço na fronteira do Navegante, desbravando o bravio do cais de Pirenópolis lusitano, nas cores, nas casas, no simples da luz do entardecer.
Nada de Pirenópolis na areia das pernas, felizes por existirem e, no fim, não pertencerem à Lisboa, mas a mim, batendo perna em Cascais, aberta ao Atlântico imenso.
Caminhando pelas costas atlânticas, ou seriam caras atlânticas? Os olhos ainda parecem olhar lá da costa do Farol de Santa Marta, onde fui feliz no mar um dia inteiro, com medo de tubarões e fascínio pelas ondas no golfinho.
Por 30 euros troco as pernas de fora-da-lei por duas de vale-transporte para Cascais e além, até que se apresente outra fronteira às pernas que são só minhas,as que fogem da lei e me levam de cúmplice e refém.

As pernas e boca voltam à Belém, ao restaurante de sempre, por 5 euros, mas não por 5 euros; apenas uma sopa hoje, por 90 centimos. Se recolhem na masmorrinha com Mariza e Amália Ribeiro, tentando somar ouvidos ao organismo do intercâmbio.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Diário de Lisboa. 2h27min

2h27min em Belém.
No Brasil, 00h27min.

Em Brasília as pessoas pensam sobre entrar na madrugada, se é uma boa opção, avaliam as consequências ou arcam com o inevitável...
Enquanto isso, eu, cá, ainda em Brasília, pego de surpresa por essa mesma madrugada que já se adianta e já corre rápida me fazendo lembrar que a hora do almoço é ao meio dia e não às três da tarde, e que o jantar é aceitável às 22h, mas não em plena meia noite.

Apesar disso, minha última madrugada nesta cidade fria, que cultua os grandes navegadores apodrecidos, evaporados e chovidos, tornados parte do mesmo mar que dominaram, durou uma semana. Uma semana... É muito tempo pra madrugada.

Às 2h27min na Rua do Embaixador eu fumo um cigarro sob as cobertas enquanto Nina Simone me fala "Don't smoke in bed", bebo uma garrafa de vinho em que espero encontrar o ritmo certo dos batimentos cardíacos e da frequência sináptica.

Acho que foi uma semana de garrafas de vinho português e cigarros sob as cobertas às 2h27min. Uma semana que passei debaixo das cobertas, protejido do frio e da compreensão de que, afinal, o cigarro é mais caro do que o vinho; uma semana achando que, além de mim, lá fora é tudo escuridão, silêncio e deserto. Uma semana de madrugada sem esperar que o dia viria.

Foi justamente no carnaval que veio a manhã. Soou o despertador verde e minúsculo no criado-mudo para dizer que o dia existe para por os sonhos da noite em existência. 2h27min e é hora dormir para acordar, pos aqui o dia chega com duas horas de antecedência.
Um chão repleto de confetes e serpentinas mortos... dando vida àquele chão tão regular, acompanhados de um batuque xoxo, em que o melhor era se satisfazer com o bloco brasileiro de carnaval, que puxava todos os outros, mas que sobressaía smplesmente por não parecer uma marcha militar. E no final das contas o que resta à paciência é se embrenhar pelos labirintos do Bairro Alto.

Agora são 3h13 e muita coisa acontece entre uma linha e outra, mas somente o que pode ser ilustrado pela infinitude do vazio vale a pena entender. Estou cá a mirar el fluir do Tejo con ganas de stay here, pois.