segunda-feira, 26 de março de 2012

Diário de Lisboa. As ondas e as escadas

O maior produto comercializado hoje na Praça do Comércio é a paisagem, emoldurada pelos bytes de inumeráveis turistas que compram roupas na Rua Augusta, cerveja no Bairro Alto, pastéis de belém em Belém, castelos na Graça...
A Praça se abre como o céu, pontilhada de estrelas brilhando no esplendor de seus flashs, orbitando o sol de um cavaleiro bronzeado rodeado por elefantes petrificados. A Praça é um funil a convergir todas as águas de pessoas ao Tejo, ao Atlântico, escorrendo invisível por escadas que mergulham no mar, em direção ao absurdo destino submerso.
Às vezes imagino almas tristes a descerem aquelas escadas, molhando a barra de vestes esvoaçantes e luminosas. Almas chorosas atravessando as pessoas a escutarem a música moçambicana, atravessando a dançarina moçambicana, atravessando os alemães a tomarem sol, as crianças a brincarem com as ondas, atravessando os japoneses sempre tão felizes, atravessando-me. Um exército desapercebido a descer aquela escadaria e se misturar com a água.

O esforço de todo um oceano para subir cada degrau de novo e de novo. As pessoas rindo da incapacidade do mar, em sua fúria, de atingir o topo da escadaria. O eterno desce e sobe espumante e violento a não ultrapassar o décimo degrau.
E as pessoas a rirem-se do alto de seu décimo primeiro degrau, medrosos demais para imaginarem-se descendo os mesmos degraus até o fundo do mar.

Eu a escrever da segurança do meu décimo primeiro sobre um mapa que a falta de papel me fez escolher.
O que não me faltam são mapas. São mapas de Sintra, Lisboa, Portugal, linhas de metrô, comboio, de autocarros e elétricos... nenhum que me guie na direção do último degrau (ou primeiro). E eu me sentindo como as ondas, incansáveis em seu objetivo de escalar a imbatível escadaria, explodindo contra cada degrau em estilhaços brancos de água.
Um dia desses, dou a mão às ondas e ajudo o oceano inteiro a subir...

Um dia desses afoguei os pés no décimo degrau e o toque do mar foi doce e carinhoso, cheio de sentimento. Mesmo vindo implacável em espuma, velocidade e explosão afogou os pés e a barra da calça, mas fez navegar o coração, seguro pela âncora dos pés.
Se tiver de lembrar de algo, lembro destas escadas e destas ondas, da ameaça constante das águas ao décimo primeiro degrau, da corrida assustada de alguns turistas que não suportam a visão aterrorizante do mar empenhado em ultrapassar o décimo, das pessoas pegas de surpresa no oitavo ou no sétimo.

É a entrada da capital das navegações e quem não pode entrar é o mar, eternamente porteiro. Ele e as gaivotas, revezando-se em turnos de vigília sobre o portão lisboeta fincado no peito do mar, dois pilares brancos fora do alcance das mãos metamorfoseando-se em Canons, Nikons, Sonys, Sansungs...

Um dia desses, dou a mão às ondas e elas me puxam pro oceano, onde vale a pena naufragar, ser esquecido nas lágrimas esquecidas da história do mundo, fazer parte do exército a atravessar turistas.

quarta-feira, 14 de março de 2012

Diário de Lisboa . Música subterrânea

É superfície.
Caminho com som nos ouvidos, os sons portáteis, indiferente às vozes do mundo ao meu redor. É um momento de certa dor sorrateira e anônima...
Acontece que acordei, mas ainda me sinto dormindo e tudo soa como uma perturbação ao meu coração sonolento, sem vigor, sem pulsação. E o que tenho é fome, como se esperasse encontrar uma lanchonete que servisse qualquer intensidade e poesia em seu cardápio.
É superfície ainda.
Eu ainda indiferente, rumando pra beira do rio pensando nas minhas afinidades com o Superman e se o Clark Kent se sentiria assim eventualmente...
É superfície, eu desço na paragem, viro para o parque e escolho seu caminho mais escuro, entre os ciprestes, dobro à direita para passar pela fonte... superfície.

Para chegar ao rio, tem o inevitável subterrâneo, uma inevitável passagem.
Uma passagem subterrânea a apenas uma escadaria de distância da superfície.

Ainda com minha própria sonoplastia para a paisagem, vou descendo as escadas, com passos de quem espera se jogar no rio, com passos de quem não tem coragem, com passos de quem espera ser jogado no rio, com passos de quem sabe que Lisboa é segura demais pra isso.
Passos tristes a carregar um coração morno, um peito morto, uma vontade de ar, uma cabeça desencaixada, deslocada.
Estes passos a deixarem a superfície e descerem com a tensão de alpinistas cada degrau em direção ao subterrâneo.
Degrau a degrau mais próximo do subterrâneo.

Mas antes do fim, uma agulha a perfurar meus fones de ouvido, uma agulha que reconheci.

Em outra ocasião bem mais feliz, descendo as mesmas escadas entre o mundo subterrâneo e o da superfície, no mesmo degradê do desnível, uma música. O som de um violão solitário aumentando de volume na mesma proporção em que iam terminando os degraus, como se o corredor da passagem estivesse inundado e o descedor de escadas estivesse prestes a mergulhar e se molhar...
A passagem subterrânea.
Na quele corredor vazio àquela hora da noite, um homem sobre um banco, o rosto voltado ao violão, como se estivesse a tentar escutar o próprio peito, indiferente a mim e à moeda que depositei.
Sozinho na passagem subterrânea, indiferente aos passageiros como eu. E os ecos de seu violão nascendo e morrendo no intervalo entre as duas escadarias. Certidão de nascimento e óbito sem nunca alcançar a luz da lua na superfície.
E na passagem subterrânea...
E agora, esta mesma agulha a remendar esta memória, me lembrando da importância daquela travessia a esta hora da noite.
Instantaneamente retirei os fones de ouvido e abaixei o rosto como se reverenciasse um deus, para não encarar com indignidade aquele personagem, na glória de sua majestade e triste figura, sentado em seu trono, a dar vida a todo o seu reino do subsolo e ser soberano sobre seus súditos, as notinhas de mãos dadas a cantar a harmonia daquele reinado.
Sua música é simples, pequena. Agudos tão desesperados e graves tão conformados, uma emoção tão profunda dedilhada com tanta perícia, como se as cordas do violão fossem de veias e artérias da própria solidão. Que o homem canta toda noite sozinho, afogado nos ecos lindos de sua prece.
Ali, no subterrâneo...

E chegando ao meio da travessia: um terremoto. A passagem inteira a tremer, o meu limbo a desestabilizar-se, o subterrâneo a chacoalhar e vibrar. Os agudos e os graves a desaparecerem no som de um trovão, como se o mundo subterrâneo, de repente, fosse o próprio céu em tempestade.

É o trilho do trem que cruza a superfície logo acima.
É o trem que também me tempesteia por dentro e o mundo inteiro parece fadado ao fim naqueles trilhos. E o trem passou, e passou, e passou, e passou. E passou.
Passou e havia novamente só o violeiro e eu. E logo havia somente eu, deixando aquela música a cada degrau que subia para a superfície.
E logo havia apenas eu e o rio, e sua música também é linda.
E logo haverá novamente só eu e o violeiro na passagem subterrânea, percurso obrigatório d meu retorno. Mas a sua música não será mais a partitura da solidor, será a do Tejo nos meus olhos e no meu peito, que é só uma via pro mar.

A única diferença entre as músicas será eu, fazendo a sonoplastia da paisagem, mas sem os fones de ouvido.