sábado, 12 de maio de 2012

Diário de Lisboa . Pinóquio em Estoril

Ah! Olha lá... tem uma música se esgueirando na distância entre a pele e os ossos. Ah! Ainda tem pelo que se arrepie? Ainda tem pelo que se arrepiar. Olha aqui! Litros e litros e litros e litros e litros de sol. Gotejando dos olhos num abraço frio do Atlântico, o doce do Atlântico. Mas que sede é essa, cacete? Lamber a areia toda desde a praia até o fundo do rio, a ponta dos dedos como quem se delicia da lembrança do que foi bom. E quilos e quilos e quilos e quilos e quilos e quilos e quilos de sol. Passando por baixo da ponte e afundando na água como chumbo, se colocando em peso sobre mim, colado ao chão mal podendo respirar. Ah! Olha que a gente não sabe nada dessa pressa toda, a gente só sabe dessa luz bonita. ............................................................................................. Autocarro errado que se faz certo, o 714 dá voltas em oito no intestino da cidade, com tantas pessoas tantas pessoas tantas, todas, dando voltas no intestino do 714, a reclamarem sempre, que é sua felicidade, a reclamarem dos oitos, do intestino, do 714, da cidade, das pessoas, das reclamações, a serem tão felizes sisudas. São como crianças a quem se deixa brincar, são tão bonitas. Todas! Com as voltas que dão dentro de si, espetando seus bicos na paisagem escorrendo pelas janelas do 714. Descendo e subindo, embarcando e desembarcando, dando colo e decolando. O eléctrico 28 e o motorista sisudo, tão lindo, tão lindo. Talvez seja pela luz, mas tão lindo tão lindo nesse sol. Pergunto e não responde, pergunto e responde que não, não pergunto mais nada e o intestino treme dando mais voltas dentro de si, oscilando o bico reclamão, vacilando o olho. O 28E vai batucando rumo a não se sabe onde desce, mas desce mesmo assim porque tem sol, tem Feira da Ladra na Graça, e tem ladrão! E tem também a velha que está sempre no bar, tem as molduras antigas e lascadas, as revistas pornô de 72, um pato feito de conchas, tem sol bem barato. Tem ladeira a que se sobe e a que se desce até o Cais do Sodré. Dois sanduíches na beira do rio e Roberto Benigni desejando ser um menino de verdade. Vamos a Cascais! Pega o comboio pra Cascais! 4,10 de ida e volta, o cartão verde. Vamos a Cascais! O comboio, a viagem, a longa viagem, nem tão longa assim, mas é viagem e viagem é sempre longa, é viagem de 20 minutos. Desce em Estoril onde aguarda um loft, um quarto único com única cama, um pedaço de homem sem pernas pra ir embora nem cabeça pra desaprovar, um estúdio, um manequim que é mulher colada de azul e recortes, pedaços, retalhos, ornamentos, Bob Wilson, um limoeiro com limão que não se come, com limão tão grande tão grande, tão amarelo, tão melancia e tão melão, uma solidão com algum pedido, um cafezinho com cigarro, e as pessoas tão bonitas, dessa vez não sisudas, mas sorriem tanto tanto tanto, todas, todas sorrisos, tantos! Pés descalços, mãos nas paredes, sentada no chão, açúcar que sobra e tudo branco tão limpo. Não por ser casa, mas por ser mais do que casa, por se desconfiar descascar a pintura e descobrir carne, abrir a torneira e lavar-se em sangue. Mas vamos pra Carcavelos, pra praia, sem roupa de banho, sem vontade de banho, até mesmo sem sol. Mas mergulha nas algas vermelhas, roxas, nas águas coloridas da minha vida, na onda roxa a atravessar a altura da cabeça. Cuidado com as pedras, tropeça e cai, mas cai na próxima onda, que depois dela tem mais outra e mais outra e mais outra e mais outra. Esse é o Atlântico, tão quente nas areias da América, tão frio aqui, mas com sal tão doce. E a gente só pode rir, porque é o que sobra quando não se sabe onde guardar qualquer coisa, ou se chora, mas é tanto mar e tanto mar que o que chora se confunde com as ondas e o que se sangra se confunde com as algas, então se ri. Ri-se muito, muito muito e tanto tanto. Mergulha na areia e sol começa a rir também. É tudo uma grande piada portuguesa, "tem piada nisto", e tem muita piada mesmo, é giríssimo, giríssimo. Os ladrilhos no chão dividindo o caminhos em partículas em que não se sabe caminhar. O caminho que leva a uma ponte que não se atravessa. Mais água! Uma foto tão maravilhosa e eu a me inundar daquela fotografia, os patinhos descrevendo a palavra brega sobre a água azul tão azul, tão verde, tão transparente que eu me misturava nela e talvez não me vissem. Mas me vêem. E eu me sinto a própria ponte, a água passando por mim, eu sem ser um obstáculo. Na volta, um prato de caracóis, de tremoços, de cascas de batata fritas, de mexido e farinheira, de chouriço, de pão, de cerveja. Em casa, tirar a roupa do varal, por roupas na máquina, por dvd no drive. Pinóquio. E Robertos querendo tanto ser um menino de verdade.

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