quarta-feira, 11 de abril de 2012

Diário de Lisboa . Barcelona . Era uma vez Barcelona...

Leões maiores que touros a guardarem a entrada d'Las Ramblas. Um bando de reis da selva de pedra e mar, implacáveis e inabaláveis. Eu a agarrar-los pelos cabelos, escapando por pouco dos dentes e garras, matando um a um, matando um a um os rugidos que se libertavam de suas gargantas enquanto lutavam para se libertarem de mim, montado sobre suas costas a domesticá-los, submetê-los, castrar-lhes as jubas. Colombo em meio à batalha, na covardia do alto de sua torre inalcançável, apontando dementemente para a América como se ainda se arrependesse do que descobriu... enquanto eu transformava em bronze um leao de cada vez, eternamente fiéis a mim e a minha coragem, olhando eternamente para o infinito à espera de um chamado meu.
N'Las Ramblas, as novas folhas surgindo nos galhos à medida dos meus passos, abandonando o inferno assim que me viam passeando com a prima Vera. Ela, gastando todo seu alemão, inglês, francês, espanhol, português e japonês enquanto se banhava no meio do rio de mundo que corre por lá.
E no dia 29 de março de 2012, a Paralisação Geral espanhola a paralisar totalmente um casal na véspera de um abraço. Os dois a observar o mar com seus olhos de metal enquanto os braços invisíveis de um permanecem quase abraçando. E o que se tem é o frio do outro, que permanece quase sendo abraçado.
Na frente dos dois, um porto de derrotados, o mar Mediterrâneo chacoalhando um barco pirata, negro e maligno, desembarcando piratas fugidos da Terra do Nunca.
O enorme navio com suas velas recolhidas, nós desatados, casco feito de pó, põe sua língua pra fora e vomita os perdedores de pernas de pau, os perdedores de tapa-olhos, os perdedores de papagaios perdidos... uma atrás do outro, os quais abrem um bar na Carrer Ample do Bairro Gótico pra recomeçar a vida com dignidade, me servindo runs, cointreaus e sorvetes de limão num grande "Smith", que é nome de de drink capitão, cervejas "Estrella" de baixa fermentação, construindo seu negócio ao redor do altar de São Peter Pan. Eu a pedir a benção da eterna juventude com um levantar de copos cheio de fé.
Noutro ponto da costa, um peixe gigante a flutuar sobre a praia da Barceloneta, a fazer sombra sobre os edifícios, meditando desgarrado do Mediterrâneo, que é pequeno demais para o peixe que pode habitar o céu. O peixe Gehry a me ofuscar a visão com suas escamas douradas sob o sol, preso pelos barceloneses no seu aquário de ar. Todos a cutucar o vidro enquanto Gehry apenas observa os "topless", os moletons, os cachorros... desejando ser sushi dos que correm na praia.
E toda noite a mesma rotina das fadas, pontilhando todos os lugares com sua luminescência azul a subir e descer no ar para ganhar dinheiro para seus senhores, traficantes-cambistas de fadas a vendê-las por qualquer mixaria ao primeiro turista. E elas se vão até que o trabalho excessivo lhes apague o brilho, lhes quebre as asas... até que a última lembrança do lindo bosque das fadas seja expirada de seus pulmõezinhos.
Enquanto isso, em El Bosc de les Fades, os habitantes mágicos fazem vista grossa para a situação. Eu a interrogar as árvores sempre de caras tão tensas e elas a me negarem qualquer informação comprometedora. Lá no balcão, a rainha do Bosc a me servir uma jarra de cerveja atrás da outra enquanto meus propósitos puramente investigativos , coincidentemente, vão perdendo prioridade para os alegres grilos amestrados a cantarem, para a cachoeira de água brilhante a cair, para as folhas multicoloridas e estalactites, para a lâmpada incandescente da lareira, para a pequena fadinha streapper a ficar nua todas as noites em frente aos fregueses.
E o que dizem é que é melhor assim... os mais fervorosos em sua sede de justiça acabaraam por desaparecer misteriosamente e ganhar suspeitas e convincentes cópias de cera no Museu de Cera logo ao lado.
Decidi passar a simplesmente olhar com compaixão para as fadinhas escravizadas sempre que saía meio embriagado do Bosc de les Fades.
Depois de oito dias, depois de muito me perder e me achar nos labirintos do Barri Gòtic, da Barceloneta, d'El Raval, da Ciutat Vella, em La Ribera, na Grácia e Montjuïc, Plaça Espanya e L'Eixample, cheguei ao derradeiro portão de despedida do meu último dia na Catalunha.
Em Les Corts deparei-me com os Pabellones de la Finca Güell, um grande portão de metal escurecido pelo tempo e um porteiro. Um dragão protegia a passagem com sua boca enorme aberta em um desespero protetor de sua função, em um fúria digna da rigidez do metal que corria em suas veias de dragão. Ele, enorme em seu rugido silencioso, sua língua bífida se esgueirando entre os dentes, as asas gigantescas bloqueando a luz do sol, as garras afiadas, do tamanho de braços, fechadas sobre as barras do portão, o rabo e o corpo esquelético enrolados no ferro dos pabellones.
Eu simplesmente deixei cair meu escudo, minha armadura, minha espada e meu tabaco e adormeci ali mesmo.
Sonhei com toda a minha Barcelona. Ao final do sonho, encontrava uma cerquinha e, equilibrado no arame, um lagartinho colorido. Eles subiu no meu dedo e peregrinou até meu ombro, onde sentou-se e cruzou as pernas enquanto eu contava da minha Barcelona. Ele nunca ouvira falar de tal cidade em toda a Catalunha, e seus olhinhos brilhavam enquanto torcia seu rabinho de tanta expectativa. Ao final da história, ele tirou uma minúscula chavinha do bolso e jogou pra dentro do meu ouvido...

Eu acordei e o dragão abandonara o portão para proteger a mim, adormecido sob suas asas. Até que acordasse, recolhesse minhas coisas, acendesse meu cigarro e cruzasse o portão para fora da minha Barcelona, vivendo feliz sempre que desse.

Fim.

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